dezembro 30, 2008


Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre. Não me mostrem o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração. Não me façam ser quem não sou. Não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente. Não sei amar pela metade. Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão. Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre.


Clarice Lispector

dezembro 29, 2008


O essencial é invisível aos olhos.

Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.


Clarice Lispector

novembro 26, 2008


Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Augusto dos Anjos

novembro 25, 2008


Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.


Clarice Lispector

novembro 12, 2008

CARTA

Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo doutras épocas, onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria ainda sonhando - nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de [ ] os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impossíveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar as duas margens escuras do rio que vai ter ao ancião mar onde as caravelas são nossas para sempre.
Sorris? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam estrelas. Chamas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, vejo longínquas marinhas.


Fernando Pessoa - O Livro do Desassossego.

novembro 01, 2008


Há pessoas que nunca se perdem porque nunca se põem a caminho.


Goethe

outubro 29, 2008


Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.


Clarice Lispector

Eu aprendi com a primavera a me deixar cortar e voltar sempre inteira.


Cecília Meireles

outubro 11, 2008


[143]

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

27/11/1930 - Fernando Pessoa.


Versos extraídos do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 164.

outubro 04, 2008


Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Carlos Drummond de Andrade

outubro 03, 2008


Rondó dos Cavalinhos

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora
E em minhalma — anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reys partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma — anoitecendo!


Manuel Bandeira

setembro 30, 2008


(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

(Resíduo)


Carlos Drummond de Andrade

setembro 27, 2008


Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...



Clarice Lispector

setembro 25, 2008

Dois Velhinhos

Dalton Trevisan


Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:

— Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde:

— Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda:

— Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.

Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.



Texto extraído do livro "Mistérios de Curitiba", Editora Record — Rio de Janeiro, 1979, pág. 110.

setembro 23, 2008


Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.


Fernando Pessoa

setembro 21, 2008


Tomou de si um afago tímido, tremulante até, e o suspendeu no alto, enquanto pensava quem poderia receber o que já se desfazia no ar, sob a marquise descascada da esquina.

Perto, uma ambulância com a porta traseira aberta, à espera sabe-se lá de quem.

Olhou, sem muito fixar, a maca lá dentro.
O cobertor dobrado.

E continuou, porque não seria ele a parar naquele ponto, espiando a exposição da vaga para uma dor alheia - ou não, pois aquela ambulância poderia estar em perfeito descanso, aberta assim só para arejar.

Era um dia quente, disso tinha certeza, e mais certeza teria se cumprisse até o fim o que estava a fazer naquele instante: entrava no quarto, ligava o ventilador, despia-se, deitava, morria para o mundo como um mouro que desfalece em sua tenda no deserto, enfim...



João Gilberto Noll, "Mouro".

setembro 19, 2008



O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de *dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...



Fernando Pessoa

setembro 18, 2008


307.

ESTÉTICA DO DESALENTO

Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.
Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.
Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou activar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.


Fernando Pessoa - Livro do Desassossego.

setembro 17, 2008




setembro 16, 2008



O sonho é ver formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.


Fernando Pessoa

setembro 15, 2008


Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.


Clarice Lispector

setembro 13, 2008


- Gosto dos venenos mais lentos! Das bebidas mais fortes! Das drogas mais poderosas! Dos cafés mais amargos! Tenho um apetite voraz. E os delírios mais loucos. Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer: E daí? Eu adoro voar!


Clarice Lispector

setembro 10, 2008

Posso ser leve como uma brisa,
ou forte como uma ventania,
depende de quando,
e como você me vê passar.


Clarice Lispector

setembro 08, 2008


fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde nossos olhares se encontram é noite: as pessoas são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestade de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto

setembro 03, 2008


é urgente o amor.
é urgente um barco no mar.
é urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

é urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

cai o silêncio nos ombros
e a luz impura, até doer.
é urgente o amor,
é urgente permanecer.

Eugénio de Andrade

agosto 31, 2008


Disse que havia duas maneira de partir:
uma era ir embora, outra era enlouquecer.


Mia Couto

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Álvares de Azevedo

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Te adoro, Teodora.


Manuel Bandeira
... Eu me desnudo emocionalmente quando confesso minha carência – que estarei perdido sem você, que não sou necessariamente a pessoa independente que tentei aparentar. Na verdade, não passo de um fraco, cuja noção dos rumos ou do significado da vida é muito restrita. Quando choro e lhe conto coisas que, confio, serão mantidas em segredo, coisas que me levarão à destruição, caso terceiros tomem conhecimento delas, quando vou a festas e não me entrego ao jogo da sedução porque reconheço que só você me interessa, estou me privando de uma ilusão há muito acalentada de invulnerabilidade. Me torno indefeso e confiante como a pessoa no truque circense, presa a uma prancha sobre a qual um atirador de facas exercita sua perícia e as lâminas que eu mesmo forneci passam a poucos centímetros da minha pele. Eu permito que você assista a minha humilhação, insegurança e tropeços. Exponho minha falta de amor-próprio, me tornando, dessa forma, incapaz de convencer você (seria realmente necessário?) a mudar de atitude. Sou fraco quando exibo meu rosto apavorado na madrugada, ansioso ante a existência, esquecido das filosofias otimistas e entusiasmadas que recitei durante o jantar. Aprendi a aceitar o enorme risco de que, embora eu não seja uma pessoa atraente e confiante, embora você tenha a seu dispor um catálogo vasto de meus medos e fobias, você pode, mesmo assim, me amar...

Alain de Bottom